Educação positiva: abordagem prioriza acolhimento e diálogo
Certo dia, ela abriu a porta do quarto e se deparou com a sua filha de 5 anos cortando o cabelo da boneca de uma amiga. A vontade de gritar raivosamente aos sete cantos: “Por que tu fez isso?” tomou conta dela. Alguns segundos de respiração e ponderação bastaram para que ela se acalmasse e, tranquilamente, abrisse espaço para ouvir a motivação da filha. “Mãe, eu queria muito brincar de cabeleireira e ver como é que ia ficar um corte no cabelo dela, mas depois cresce!”. Isabelli Gonçalves é mãe da Helena, protagonista da história, de 5 anos, e Lívia, de 3 anos. Criadora do Depois que Pari Duas, perfil com mais de 390 mil seguidores no Instagram, ela é educadora parental e compartilha os seus conhecimentos sobre educação positiva.
Há alguns anos, talvez Isabelli teria reagido à história da boneca da forma que sua mente sinalizou em primeiro lugar. Mas os significados de maternidade e educação ganharam novas formas na vida da gaúcha. Dentista por formação, ela teve o seu primeiro contato com a educação positiva quando Helena tinha dois anos, e Lívia ainda estava em sua barriga.
O início
Ela relata que se sentia muito desconectada da filha e relembra as constantes brigas que aconteciam dentro de casa. Apesar de, na época, acreditar que a rudez fazia parte do educar, ela comprou um livro chamado O Cérebro da Criança, de Daniel J. Siegel e Tyna Payne Bryson, que defendia a educação positiva e respeitosa.
“Aquilo foi um divisor de águas na minha vida, porque cada página que eu virava era uma chavezinha que virava dentro de mim”, conta. Depois do livro, ela passou a se aprofundar mais na temática e, aos poucos, colocou em prática aquilo que, hoje, ela ensina com tanta propriedade nas redes.
“Eu comecei a colher frutos legais da educação respeitosa não porque eu queria mudar o comportamento dela [filha], mas porque eu acabei mudando o meu comportamento”, pontua.
Quando perdeu o emprego durante a pandemia, entendeu que poderia (e gostaria) de se profissionalizar na área da educação positiva e, assim, ajudar outros pais a se conectarem com os filhos de maneira saudável. Atualmente, ela é educadora parental com certificado pela disciplina positiva internacional (PDA) e faz pós em Neurociência, Educação e Desenvolvimento Infantil na PUC-RS.
O que é educação positiva?
Isabelli aponta três pilares da educação positiva: o respeito, a firmeza e a gentileza. Ela explica que esses fundamentos foram pontuados por Jane Nelsen na disciplina positiva, a qual se baseou em teóricos como Alfred Adler e Rudolph Dreikurs.
A psicóloga infantil e orientadora parental Emanuelle Rios também cita Adler e traz o princípio pelo qual a criação respeitosa se baseia. “Os pilares para uma educação respeitosa estão relacionados a fazer com que a criança tenha o sentimento de pertencimento e significância. Ou seja, o sentimento de que merecem ser tratadas com dignidade e respeito, assim como todos as pessoas”, diz.
A troca de um modelo de educação vertical por um horizontal é essencial para que a criação seja, de fato, coerente com os ideais da disciplina positiva. Isso significa que a expressão “manda quem pode, obedece quem tem juízo” não tem mais lugar.
“Na educação respeitosa, a gente busca chegar próximo de um relacionamento mais horizontal possível, onde todos nós somos dignos de respeito. Temos o mesmo valor porque todos somos seres humanos, independentemente da idade”, explica Isabelli.
Além disso, oferecer autonomia e participação das crianças também faz parte do processo. Entretanto, a mãe de Helena e Lívia desmistifica a ideia de que a educação positiva implica em uma relação livre e sem limites. “A gente tem as nossas regras e elas devem sim ser ensinadas, elas devem ser aplicadas, mas também não precisa ser feito de uma forma rude, desrespeitosa e não dando espaço para criança”, afirma.
Violência
Seja física ou verbal, a violência é completamente incompatível com a concepção de educação respeitosa. Uma vez que a relação é vista de forma horizontal, e a criança é tratada com o mesmo respeito que qualquer outra pessoa, não há espaço para agressões de qualquer natureza.
Isabelli vê a questão da violência como um assunto bastante preocupante. Segundo ela, ainda existe uma cultura que perpetua a crença de que para educar, é preciso agredir: “Existe essa visão de que bater, castigar, punir e humilhar uma criança fazem parte do processo de educar. E a fiscalização é muito falha quanto a isso porque, na verdade, aos olhos da lei, é crime bater.”
As consequências de uma criação agressiva são diversas tanto para a formação da criança, quanto para a relação dela com os pais. Emanuelle pontua que o estresse tóxico é um dos prejuízos vistos em pessoas que tiveram cuidadores violentos. “O estresse tóxico está relacionado a questões mais sérias como abuso físico, sexual, verbal, negligência, levando a criança a possíveis problemas de aprendizagem, comportamentais, emocionais e de relacionamentos”, diz.
Além disso, a questão da autoestima e do amor próprio é destacada por ambas profissionais. De acordo com elas, a criança tende a ter mais dificuldade de desenvolver empatia e autoconfiança. “Ela não deixa de amar os pais, ela deixa de amar a si”, completa Isabelli.
Leia também: Educação não violenta: o que é e como usá-la
Relação homem x mulher e o papel da educação positiva
A forma com a qual os pais educam as crianças influencia na formação dos indivíduos e, consequentemente, na perpetuação — ou não, de algumas práticas. Ao longo dos anos, foi esperado que as mulheres se comportassem de forma delicada e compreensiva. Os homens, por sua vez, teriam que ser mais agressivos, másculos e nada sensíveis.
Isabelli comenta que essas atitudes fazem com que relacionamentos abusivos continuem a perdurar, pois essas crianças crescem acreditando que o amor e a violência coexistem. Além disso, homens e mulheres se sentem pressionados a seguirem um padrão esperado por essa cultura enraizada.
“De um lado, a gente tem a menina que tem que ser boazinha, tem que respeitar, abaixar a cabeça e falar sim para tudo. No futuro, temos uma mulher que não consegue dizer não, que não consegue se posicionar e solicitar as suas necessidades”, detalha.
Por outro lado, a socialização masculina exige dos homens uma postura de galanteador, provedor, sem espaço para pensar ou comunicar os próprios sentimentos.
A questão do choro, por exemplo, é levantada por Isabelli. Afinal, não é incomum ouvir que homem de verdade não chora. O documentário The Mask You Live In, dirigido por Jennifer Siebel Newsom, mostra os efeitos do machismo nos próprios meninos estadunidenses. A produção audiovisual revela como a estrutura é cíclica, e os comportamentos são herdados. Assim, um homem que machuca, provavelmente, já foi machucado — e silenciado — um dia.
E um dos objetivos da educação positiva é justamente quebrar esse ciclo. Por meio do diálogo e do respeito, as relações são construídas de maneira mais saudável. Dessa forma, a criança, independentemente do gênero, tende a sentir-se mais livre para expressar suas emoções.
Onde achar a paciência?
Entre os desafios mais frequentes dos pais, Emanuelle destaca a falta de paciência frente à irritabilidade dos filhos. Na teoria, é fácil entender que é preciso paciência para lidar com os acessos de raiva e crises de choro das crianças, mas como colocar em prática?
De acordo com a psicóloga, é preciso, primeiramente, olhar para si mesmo e aprender a gerenciar as próprias emoções. “Quando o adulto consegue lidar com as suas próprias emoções, ele consegue gerenciar o ocorrido através do seu ‘lado’ racional, ajudando a criança a se regular através, também, da modulação”, explica.
Além disso, ao entender de fato os critérios defendidos pela educação positiva, a ideia de que a criança é um ser que precisa ter suas emoções e pensamentos validados começa a ser compreendida de forma mais natural. “Uma coisa é ouvir e acolher, outra coisa é concordar com o mau comportamento. O afeto gera conexão, fazendo com que as emoções intensas diminuam, dando vez ao cérebro racional entrar na ativa”, pontua a profissional.
Paciência para ter paciência
Isabelli explica que o trabalho de desenvolver mais paciência exige um certo tempo. A partir de suas próprias vivências e da sua prática como educadora parental, ela percebe que o esforço para manter-se consciente é diário. “É um trabalho de formiguinha para mudar isso, porque eu não tenho como te dar uma fórmula mágica de como te irritar menos. Eu posso te ajudar a transformar a visão que tu tem do teu filho e aí sim, consequentemente, tu vai ter mais paciência.”
Também é importante levar em consideração que as crianças estão em processo de aprendizagem e, por isso, ainda não são capazes de comunicar as suas necessidades como os adultos. Nesse momento, o choro, o grito e a birra podem aparecer. A ideia da educação positiva é buscar entender o que está causando a inquietação e acolher o sentimento da criança — buscando, por fim e se possível, encontrar uma saída para aquele problema.
Educação positiva na prática
“Eu gosto de falar para as minhas seguidoras que a minha vida mudou quando eu abri mão de educar”, é o que diz a mãe de Helena e Lívia. Ela explica que na educação positiva, não se busca a obediência, pois “a obediência cega as pessoas e não faz um ser humano pensante e com autodisciplina.”
De acordo com ela, existe uma vontade urgente de educar as crianças por parte dos pais. Mas esse sentimento, em vez de impulsioná-los para uma criação mais saudável e respeitosa, alimenta a ideia de que é preciso educar a qualquer custo.
Na prática, a educação respeitosa envolve um maior diálogo com os filhos e espaço para ouvi-los. Além disso, é oferecida uma certa autonomia para as crianças começarem a aprender a fazer as próprias escolhas. Momentos de conexão e afeto são bastante valorizados.
Por outro lado, o sistema de recompensa, por exemplo, não é aplicado. Afinal, segundo Isabelli, os pequenos precisam entender desde cedo que certas coisas precisam ser feitas (como tomar banho, escovar os dentes, comer legumes, etc) e isso não pode ser condicionado a um fator externo. A mesma lógica é empregada em relação a castigos ou agressões, uma vez que eles não são usados como forma de chantagear a criança para fazer ou deixar de fazer o que está sendo proposto.
Atividades e dinâmicas
Emanuelle também ressalta a importância de desenvolver inteligência emocional desde cedo. “Com isso, elas [crianças] tendem a se automotivar, desenvolver empatia, autoestima e autonomia, além de conseguirem seguir em frente diante das adversidades da vida”, pontua.
A educação positiva também busca investir na formação de seres mais conscientes e ponderados. Por meio de algumas dinâmicas, Isabelli consegue instigar essas características em suas filhas — além de orientar outros pais a fazerem o mesmo.
Ela cita a criação de uma caixinha da calma. Dentro dela, reúnem-se coisas que ajudam a acalmar, como massinha, garrafinhas sensoriais com glitter e cartões de encorajamento. Além disso, ela também fala sobre os cartões de emoções. Com eles, os filhos podem mostrar para os pais como eles estão se sentindo a partir das figuras — triste, feliz, ansioso, com raiva, etc.
“A gente entra no mundo da criança para que ela se sinta respeitada e acolhida em todos os momentos. Então, a gente não precisa tentar impedir que o momento desafiador aconteça, ele é uma forma de aprendizado”, afirma.
Além disso, a educação positiva acredita em uma relação mais genuína entre pais e filhos. Por isso, pedir desculpas e mostrar as próprias vulnerabilidades como pai também fazem parte do processo.
Quando procurar ajuda?
Existem casos em que a atuação profissional é necessária. Emanuelle revela que existem alguns sinais que podem indicar a necessidade de uma ajuda externa. “Principalmente a partir do momento que a criança demonstrar mudanças de comportamento, tristeza, apatia, falta de interesse nas coisas que gosta, irritabilidade constante, desregulação emocional que gera prejuízos significativos, medos intensos e queixas somáticas.”
Há situações, ainda, nas quais os pais precisam desse apoio — e, sobretudo, as mães. Isabelli conta que 95% das pessoas que procuram o seu trabalho são mulheres.
Dessa forma, não há vergonha em procurar apoio e orientação. Na verdade, despir-se dessa necessidade de ser uma supermãe ou um superpai é um dos primeiros passos para criar uma relação legítima e real com os próprios filhos.
Carta aberta à uma futura mãe
Como educar os filhos para o mundo e como protegê-los dele? As expectativas e os medos crescem durante a gravidez de forma desenfreada e não existe manual de boas práticas para se preparar frente a um acontecimento tão singular.
Emanuelle destaca a importância de entender sobre o desenvolvimento da criança para, assim, saber como lidar com as situações depois do nascimento do bebê. “O conhecimento nos liberta e nos leva a entender sobre o mundo que nos rodeia. No caso da maternidade, estudar sobre a criança ajuda a tirar muitas interrogações das vivências do dia a dia.”
Isabelli também indica que a futura mãe invista em aprendizados: “Estude, leia, consuma conteúdo. Tem pessoas incríveis hoje em dia que falam sobre isso, que trazem esse conteúdo na internet de uma forma facilitada e didática.”
Por fim, ela enfatiza que as mães se olhem com mais carinho e cuidado. Afinal, quando nos enxergamos como seres imperfeitos e em construção, mas ainda dignos de amor e alegria, enxergamos as crianças da mesma forma. “Lembre-se: você não precisa ser perfeita todos os dias.”
Fonte: Isabelli Gonçalves, educadora parental e criadora do perfil Depois que Pari Duas e Emanuelle Rios, psicóloga infantil e orientadora parental